terça-feira, janeiro 16, 2007

VOU DE MIM

Desde o início da semana, o clima naquela escola de educação infantil não era o mesmo. O pátio ficou menor devido à quantidade de isopor pintado, aos tapumes necessários, às bandeirolas e às caixas nas quais estavam os balões por encher. E, no meio de todos esses materiais, as monitoras e professoras conduziam com cuidado seus pequenos alunos, com idades entre 2 e 4 anos. Uma festa com príncipes e princesas estava prevista para sábado, a fim de comemorar o Dia das Crianças e antecipar o fim do ano, tão próximo.

Por sorteio, as crianças das duas diminutas turmas do maternal foram escaladas para se apresentar com fantasias, de modo a reproduzir tudo aquilo que já vinha se constituindo no seu imaginário infantil. A cada princesa, o seu príncipe. Como há mais alunas e alunos do que príncipes e princesas apreciáveis e desejáveis, decidiu-se que na festa haveria três Cinderelas, duas Brancas de Neve, uma Rapunzel, uma Bela Adormecida, duas Chapeuzinhos Vermelhos e duas Marias com seus respectivos Joõezinhos. Victória, minha neta de quase 4 anos, deveria ir vestida de Branca de Neve.

Na quinta-feira, já era possível ver as colunas do palácio onde aconteceria o baile. Pedaços de isopor faziam imaginar o tamanho das abóboras, o caixão de vidro da Bela Adormecida e os castelos da Rapunzel e da Cinderela. Árvores, muitas delas mostrarão a passagem da floresta para o local da festa. Um alvoroço. As crianças querem saber: onde estão os sapatinhos de cristal? Não há bruxa? E a maçã envenenada? E os Três Porquinhos? Não existe Lobo Mau? E a Vovozinha? Pouco a pouco, vão se convencendo de que, para a festa, só haviam sido convocados “os do bem”, os “bois brancos”, como costumo dizer.

Sábado, 15 horas. Banho e início da arrumação de nossa princesa, a Branca de Neve. De repente, o inesperado: Victória nem admite a idéia de vestir a fantasia. Não quer porque não quer. Bate o pé e chora. Sentada no chão, está desolada. Simplesmente, não quer. Surge, então, a afirmação surpreendente:
– Eu não quero ir de Branca de Neve! Vou de mim! Eu quero ir de mim!
Ela queria ir de Victória, como ela é, e não de Branca de Neve.

Como contrariar uma criança que escancara, com todas as letras, um paradigma de verdade, de autenticidade? Como, no entanto, furar uma programação infantil e, o que é pior, deixar um príncipe sem a sua princesa? Enquanto a família, em conselho reunida, discute a melhor solução para o impasse, eu penso em minha longa vida e nas inúmeras oportunidades com que me deparei com situações reais nas quais o ser autêntico é confrontado e testado e, muitas vezes, naufraga no seu esforço por viver de si mesmo, de mostrar-se como é.
Quantos não vão de si mesmos! Quantos fingem, vestem uma roupagem que não lhes pertence, uma vestimenta fantasiosa de inteligentes, sábios, ricos, bondosos, religiosos, beneméritos, cultos e amigos fiéis, acreditando que poderão ser mais bem aceitos dessa forma do que se surgissem como realmente eram. A auto-estima baixa é, sem sombra de dúvida, a mãe desse engano lamentável que muitos cometem e do qual já fui vítima tantas vezes. Aquele que “veste uma máscara” esconde-se em uma grossa camada de verniz, teme ser visto com sua real face, porque a abomina. Não gosta daquele rosto, daquela personalidade. Renega suas raízes, os seus traços e permanece soberbo e infeliz.
A criança, sem o saber, freqüentemente nos dá lições de como resistir às fantasias que nos tiram da realidade e nos lançam em um mundo ilusório, arriscado por ser fictício. A queda é tão maior quanto a altura, e, conseqüentemente, a distância que nos separa da realidade. Há pessoas que não superam. Existem indivíduos que comprometem sua vida e sua segurança e a vida e segurança dos seus e de outros, para manter as aparências enganosas. Custe o que custar!

Enganam-se, acreditando que continuam acreditados e prosseguem como uma fraude viva, errando e sofrendo com os resultados de suas ações e omissões. Onde e como as pessoas começam a mentir? Mentir para si mesmo? Mentir para os outros? Como uma inocente festinha infantil pode contribuir para distorcer a natural tendência para o bem, para o certo, que é natural no ser humano nascido em condições de normalidade?

Quais seriam suas razões? Estaria pensando que, indo de Branca de Neve, ganharia o príncipe, mas perderia seus pais e Tatão, seu irmão? Será que eu estaria nessa perda? Nem quero imaginar...

Enquanto reflito, meus familiares decidem e agem. Victória, depois de muita argumentação dos pais, Vicente e Rosângela, entendeu que ir de Branca de Neve por fora não a impedia de ir dela própria por dentro. Compreendeu que se tratava de uma festa e que sua ausência tornaria infeliz um menininho que iria de príncipe e ainda não estava desperto, talvez, para seus profundos questionamentos existenciais. O menino não ficaria magoado, supondo que sua negativa seria porque era ele e não outro garoto? Afinal, por compreensão, respeito à disciplina, carinho ao coleguinha e, também, porque a festa seria linda, concordou em vestir a ma-ra-vi-lho-sa fantasia que estava sobre sua cama.

E eu pude, então, ver passar à minha frente a mais bela Branca de Neve que eu poderia ter sonhado em minha infância, quando ainda me julgava um príncipe. E nos dias que me restam, Victória, por amor e em sua homenagem, vou querer sempre “ir de mim”. Obrigado!

Damásio de Jesus


Um comentário:

Karol Sueto Moreira disse...

"Ir de mim" é lindo!