Joguete
Hotel no centro da cidade. Aparência externa triste. Cinza escuro contrastando com os antigos ar-condicionados que se projetam para fora das janelas. Portaria: igual a todas as portarias de hotéis. Porteiro: senhor de sessenta e poucos anos, rosto sério, porém, de aparência simpática. Mas hoje não. Hoje seu Aristolo não esta de bom humor. Hoje é quinta-feira, dia de jogo.
- Boa tarde - diz o senhor que acaba de adentrar a portaria.
- Boa tarde - responde Aristolo.
- Me esperam no quarto 508.
- Seu nome?
Quarto 508. O senhor bate à porta. Vê que alguém o observa pelo olho mágico. Não há sinal de que vá abrir. Já está ficando nervoso com a situação. “Não devia ter vindo”, pensa. Chave na fechadura. Barulho de tranca destravando-se. A porta abre-se e surge um outro senhor de trás. São dois homens distintos, muito bem vestidos em seus ternos pretos. Há também o detalhe da flor vermelha na lapela. É mais que um detalhe, é uma senha.
- Desculpe a demora em abrir a porta, é que sua flor está um pouco afundada dentro do bolso de seu terno, o que, de certo modo, dificulta a identificação.
- Ah, claro - disse Moringa (ele se chama Moringa), ajeitando a flor em seu devido lugar.
- Queira entrar, por favor - disse Pedrosa (ele se chama Pedrosa), fazendo um gesto com o braço.
O outro, antes de obedecer, dá uma olhada para ambos os lados do corredor. Entra. O apartamento é pequeno; no centro do que parece ser, ao mesmo tempo, sala e quarto, está uma mesa ao redor da qual estão sentados quatro senhores. Todos muito elegantes, trajando (não há o que se espantar!) terno preto. Moringa olha nos olhos de cada um.
- Sente-se por favor, Moringa.
- Mas afinal, para que você nos chamou aqui? E quem é você? - perguntou um dos presentes.
- Agora que já estamos todos reunidos posso me apresentar. - disse Pedrosa.
“Até que enfim”, pensou outro que estava à mesa.
- Nenhum de vocês me conhece, não é mesmo?
Os outros assentiram com a cabeça.
- Bem, eu, ao contrário, conheço todos vocês. Sei onde moram, onde trabalham, onde se divertem, onde cortam o cabelo, enfim, onde passam suas mesquinhas vidas dia após dia.
Um dos senhores levanta-se.
- Você ficou maluco? Perdeu a noção do que é perigo?
Pedrosa, que tinha sido o único a permanecer de pé, olha-o tranqüilamente. É como se já esperasse aquela reação. Diz para o outro se sentar, pois ainda não terminou sua “explanação”.
- Explanação merda nenhuma! Você nos humilhou.
- Sente-se por favor, senhor Cairo.
- Eu não sei o que eu vim fazer aqui. Vou embora dessa merda.
- Senhor Cairo, queira se sentar.
- Senhor Cairo é o cacete! (olhando para os outros) E vocês? Não vão fazer nada? Ele falou que a gente leva uma vida medíocre.
- Mesquinha - disse alguém.
- Quê?
- Ele usou a palavra “mesquinha”.
- Vai tomar banho! Eu sei o que ele disse!
- Senhor Cairo, não avisarei novamente. Por favor, para o seu bem, sente-se em sua cadeira.
- É? E vai fazer o que comigo? Me bater? Me cuspir? Não, não, não, já sei. Vai me jogar pela janela? Afinal, estamos no quinto andar.
A poça de sangue em pouco tempo chegou ao pé da mesa. Foram oito tiros. Três no rosto e cinco no peito. Pedrosa tirou o lenço vermelho do bolso, limpou sua arma e a recolocou na parte de trás da calça.
- Bem senhores, desculpem-me o transtorno. E não se preocupem com a arma, é só prevenção - e deu um sorrisinho com o qual ninguém compartilhou.
“Podemos começar?”, continuou Pedrosa.
- Mas começar o quê? - indagou Moringa.
- Ah, claro. Por causa daquele senhor que ali está (e apontou para o morto no chão), quase me esqueço de lhes explicar o motivo da presença de vocês aqui. Serei breve. Os senhores receberam em suas casas uma carta minha. Junto com a carta enviei também um cheque de valor considerável. Em relação ao dinheiro vocês tinham duas possibilidades de uso: ou gastar integralmente no que lhes conviesse, ou usar metade e trazer a outra metade para o endereço indicado. Deixei bem claro na missiva que, caso escolhessem a primeira opção, era desnecessário a presença de vocês aqui. Contudo, se optassem pela segunda, tinham grandes chances de ganhar soma muito maior do que estavam recebendo. Para a minha feliz surpresa todos que receberam a carta aqui estão. Pois bem, aqui começa a melhor parte. Vocês estão aqui reunidos para participarem de um jogo de cartas bem conhecido: Vinte e um. As regras, acredito eu, são do conhecimento de todos. O dinheiro que vocês trouxeram, ao contrário do que devam estar pensando, não é para apostas. O dinheiro serve única e exclusivamente para resgate.
“Resgate?”, pensou alguém.
- Resgate? - perguntou um dos presentes.
- Sim, resgate. De quê? Vocês saberão logo mais.
- E o que apostaremos? - perguntou outro.
- Suas vidas.
Todos ficaram meio transtornados com aquela resposta. Devia ser brincadeira. Um velho excêntrico buscando uma nova forma de gastar seu dinheiro. Iguais a ele existem vários por aí. Cheios de grana e uma vontade imensa de gozar com a cara de quem vive duro.
- O senhor ta de sacanagem com a gente? - pergunta o que parecia ser o mais novo do grupo.
- Noronha, eu pareço estar de sacanagem?
“Explica direito”, pediu Vanderlei que tinha ouvido tudo, desde o início, sem dizer palavra alguma.
- É simples, caro Vanderlei. As disputas são feitas sempre de dois em dois. O que perde escolhe entre a possibilidade de levar um tiro ou comprar sua vida de volta. É o que eu chamo de resgate. Aí que entra o dinheiro que trouxeram. Uma observação, meus amigos. Vejam que existe a possibilidade de levar o tiro, assim como há a possibilidade de sair ileso. Simples. A velha roleta russa.
- E quem dá o tiro? - perguntou Noronha.
- O ganhador da rodada, obviamente.
- E o que ele ganha? - perguntou Moringa.
- Como lhes disse na carta, muito dinheiro. Mas só ao final. Só após ter vencido todas as rodadas. Como vocês são três, para levar a bolada é preciso vencer três partidas.
- Não seriam duas? - perguntou Vanderlei.
- Meu nobre Vanderlei, se eu não jogasse que graça teria para mim tudo isso? Então, todos estão de acordo?
Pedrosa sabia que, mesmo não estando de acordo, todos jogariam. Escolhia a dedo o que ele costumava chamar seus “parceiros de jogo”. Todos homens de meia idade, casados, endividados e, principalmente, com um vício em comum: o jogo.
Aristolo está na portaria ouvindo seu radinho. É um senhor bondoso. Não gosta de encrenca para o seu lado. Não gosta de saber da vida dos moradores. Finge que não ouve quando alguns moradores reclamam de barulho no quarto 508. Afinal, Pedrosa não é dono só daquele quarto. Ele é dono do edifício inteiro. Poucos sabem. Aristolo sabe. E sabe também que precisa do emprego. Não lhe interessa o que são aqueles sacos pretos grandes que, toda madrugada de quinta para sexta-feira, descem pelo elevador de serviço junto com senhores muito estranhos. Em seguida vem sempre Pedrosa, que lhe acena com a cabeça. Aristolo está ouvindo A voz do Brasil. Está de mau humor. Hoje é quinta-feira, dia de jogo.
- Boa tarde - diz o senhor que acaba de adentrar a portaria.
- Boa tarde - responde Aristolo.
- Me esperam no quarto 508.
- Seu nome?
Quarto 508. O senhor bate à porta. Vê que alguém o observa pelo olho mágico. Não há sinal de que vá abrir. Já está ficando nervoso com a situação. “Não devia ter vindo”, pensa. Chave na fechadura. Barulho de tranca destravando-se. A porta abre-se e surge um outro senhor de trás. São dois homens distintos, muito bem vestidos em seus ternos pretos. Há também o detalhe da flor vermelha na lapela. É mais que um detalhe, é uma senha.
- Desculpe a demora em abrir a porta, é que sua flor está um pouco afundada dentro do bolso de seu terno, o que, de certo modo, dificulta a identificação.
- Ah, claro - disse Moringa (ele se chama Moringa), ajeitando a flor em seu devido lugar.
- Queira entrar, por favor - disse Pedrosa (ele se chama Pedrosa), fazendo um gesto com o braço.
O outro, antes de obedecer, dá uma olhada para ambos os lados do corredor. Entra. O apartamento é pequeno; no centro do que parece ser, ao mesmo tempo, sala e quarto, está uma mesa ao redor da qual estão sentados quatro senhores. Todos muito elegantes, trajando (não há o que se espantar!) terno preto. Moringa olha nos olhos de cada um.
- Sente-se por favor, Moringa.
- Mas afinal, para que você nos chamou aqui? E quem é você? - perguntou um dos presentes.
- Agora que já estamos todos reunidos posso me apresentar. - disse Pedrosa.
“Até que enfim”, pensou outro que estava à mesa.
- Nenhum de vocês me conhece, não é mesmo?
Os outros assentiram com a cabeça.
- Bem, eu, ao contrário, conheço todos vocês. Sei onde moram, onde trabalham, onde se divertem, onde cortam o cabelo, enfim, onde passam suas mesquinhas vidas dia após dia.
Um dos senhores levanta-se.
- Você ficou maluco? Perdeu a noção do que é perigo?
Pedrosa, que tinha sido o único a permanecer de pé, olha-o tranqüilamente. É como se já esperasse aquela reação. Diz para o outro se sentar, pois ainda não terminou sua “explanação”.
- Explanação merda nenhuma! Você nos humilhou.
- Sente-se por favor, senhor Cairo.
- Eu não sei o que eu vim fazer aqui. Vou embora dessa merda.
- Senhor Cairo, queira se sentar.
- Senhor Cairo é o cacete! (olhando para os outros) E vocês? Não vão fazer nada? Ele falou que a gente leva uma vida medíocre.
- Mesquinha - disse alguém.
- Quê?
- Ele usou a palavra “mesquinha”.
- Vai tomar banho! Eu sei o que ele disse!
- Senhor Cairo, não avisarei novamente. Por favor, para o seu bem, sente-se em sua cadeira.
- É? E vai fazer o que comigo? Me bater? Me cuspir? Não, não, não, já sei. Vai me jogar pela janela? Afinal, estamos no quinto andar.
A poça de sangue em pouco tempo chegou ao pé da mesa. Foram oito tiros. Três no rosto e cinco no peito. Pedrosa tirou o lenço vermelho do bolso, limpou sua arma e a recolocou na parte de trás da calça.
- Bem senhores, desculpem-me o transtorno. E não se preocupem com a arma, é só prevenção - e deu um sorrisinho com o qual ninguém compartilhou.
“Podemos começar?”, continuou Pedrosa.
- Mas começar o quê? - indagou Moringa.
- Ah, claro. Por causa daquele senhor que ali está (e apontou para o morto no chão), quase me esqueço de lhes explicar o motivo da presença de vocês aqui. Serei breve. Os senhores receberam em suas casas uma carta minha. Junto com a carta enviei também um cheque de valor considerável. Em relação ao dinheiro vocês tinham duas possibilidades de uso: ou gastar integralmente no que lhes conviesse, ou usar metade e trazer a outra metade para o endereço indicado. Deixei bem claro na missiva que, caso escolhessem a primeira opção, era desnecessário a presença de vocês aqui. Contudo, se optassem pela segunda, tinham grandes chances de ganhar soma muito maior do que estavam recebendo. Para a minha feliz surpresa todos que receberam a carta aqui estão. Pois bem, aqui começa a melhor parte. Vocês estão aqui reunidos para participarem de um jogo de cartas bem conhecido: Vinte e um. As regras, acredito eu, são do conhecimento de todos. O dinheiro que vocês trouxeram, ao contrário do que devam estar pensando, não é para apostas. O dinheiro serve única e exclusivamente para resgate.
“Resgate?”, pensou alguém.
- Resgate? - perguntou um dos presentes.
- Sim, resgate. De quê? Vocês saberão logo mais.
- E o que apostaremos? - perguntou outro.
- Suas vidas.
Todos ficaram meio transtornados com aquela resposta. Devia ser brincadeira. Um velho excêntrico buscando uma nova forma de gastar seu dinheiro. Iguais a ele existem vários por aí. Cheios de grana e uma vontade imensa de gozar com a cara de quem vive duro.
- O senhor ta de sacanagem com a gente? - pergunta o que parecia ser o mais novo do grupo.
- Noronha, eu pareço estar de sacanagem?
“Explica direito”, pediu Vanderlei que tinha ouvido tudo, desde o início, sem dizer palavra alguma.
- É simples, caro Vanderlei. As disputas são feitas sempre de dois em dois. O que perde escolhe entre a possibilidade de levar um tiro ou comprar sua vida de volta. É o que eu chamo de resgate. Aí que entra o dinheiro que trouxeram. Uma observação, meus amigos. Vejam que existe a possibilidade de levar o tiro, assim como há a possibilidade de sair ileso. Simples. A velha roleta russa.
- E quem dá o tiro? - perguntou Noronha.
- O ganhador da rodada, obviamente.
- E o que ele ganha? - perguntou Moringa.
- Como lhes disse na carta, muito dinheiro. Mas só ao final. Só após ter vencido todas as rodadas. Como vocês são três, para levar a bolada é preciso vencer três partidas.
- Não seriam duas? - perguntou Vanderlei.
- Meu nobre Vanderlei, se eu não jogasse que graça teria para mim tudo isso? Então, todos estão de acordo?
Pedrosa sabia que, mesmo não estando de acordo, todos jogariam. Escolhia a dedo o que ele costumava chamar seus “parceiros de jogo”. Todos homens de meia idade, casados, endividados e, principalmente, com um vício em comum: o jogo.
Aristolo está na portaria ouvindo seu radinho. É um senhor bondoso. Não gosta de encrenca para o seu lado. Não gosta de saber da vida dos moradores. Finge que não ouve quando alguns moradores reclamam de barulho no quarto 508. Afinal, Pedrosa não é dono só daquele quarto. Ele é dono do edifício inteiro. Poucos sabem. Aristolo sabe. E sabe também que precisa do emprego. Não lhe interessa o que são aqueles sacos pretos grandes que, toda madrugada de quinta para sexta-feira, descem pelo elevador de serviço junto com senhores muito estranhos. Em seguida vem sempre Pedrosa, que lhe acena com a cabeça. Aristolo está ouvindo A voz do Brasil. Está de mau humor. Hoje é quinta-feira, dia de jogo.
Um comentário:
Putz, tô aqui esperando o jogo começar!!!!!
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